Seis horas antes do jogo ela se reúne com o grupo precursor. Orienta e repete o que eles, (alguns já com quase trinta anos de batalhão) estão cansados de saber:
- Verifiquem as entradas! Se há entulhos que possam ser usados como armas! Montem a divisão de torcida! Cuidado com a postura! Etc. e mais etc.
É mais um jogo. Normal. Rotineiro. A doutrina de Choque é relembrada e a preparação é sempre a mesma: cuidados, alertas, orientações, cuidados, cuidados, cuidados...
A tropa. Ah, a tropa... Já calejada, espera a distribuição das patrulhas. Sargento fulano: entrada da Angustura. Sargento Beltrano: Rua Manoel de Carvalho. Cabo Cicrano: Divisão de torcida. São em média 80 jogos por ano, entre Brasileirão e o Campeonato Pernambucano da primeira divisão. Todos devem ser perfeitos. É igual ao trio de arbitragem: se não aparecer funcionou a contento.
Três horas antes do jogo o capitão comandante do policiamento desloca o restante da tropa para o estádio. Chama a Aspirante e transmite as ordens finais. Cuidados, cuidados, cuidados...
Com pouco menos de um ano na unidade, a aspirante também já sabe suas atribuições. Aprendeu rápido. Já sabe que deve agir com segurança, equilíbrio, rapidez e com senso de justiça inerentes a quem decide num gabinete com ar condicionado. Não interessa. Acertou-se, agiu com bom senso. Errou-se, faltou maturidade, técnica e bom senso.
Tudo bem, essa é a profissão que ela escolheu desde que se entende por gente, quando envergava a farda azul do Colégio da Polícia Militar. Filha de um Praça da PM, estudou e conseguiu realizar o sonho de fazer o Curso de Formação de Oficiais e escolher o Batalhão de Choque para servir.
Começa o jogo. Apesar da aparente normalidade, pensa: hoje ta diferente. O clima não está bom! De repente, um ser desgovernado, destemperado, desesperado, sai do gramado, salivando e chutando uma “bola” em forma de garrafa e apontando seus dedos médios para a torcida da casa, que revoltada com aqueles gestos clama uma resposta. Cadê a Polícia? Tem que prender! Marginal!
Segundos são suficientes para a pronta resposta. Ela se aproxima e pensa: vou fazer a condução até o vestiário e em seguida será conduzido o “profissional” até a delegacia. Cometeu dois delitos. Não posso ser omissa.
- Me acompanhe!
- Não toque em mim! Não vou ser conduzido! Sai daqui sua polícia de merda!!!
Opa desacato: a partir daí, todo mundo viu. Tentativa de imobilização, fuga, jogadores partindo em socorro ao companheiro, seguranças no vestiário, confronto iminente, saída rápida e segura, presidente de clube obstruindo trabalho da polícia, desacatos, delegacia, denuncias absurdas de agressões e finalmente julgamento e condenação.
Durante o entrevero já se noticiava nas emissoras do Sudeste, o “absurdo” cometido pela polícia pernambucana. Terra de ninguém, atrasada, futebol de segunda, só podia dar nisso!
Durante toda a noite e na manhã seguinte as resenhas anunciavam, já estava eleita a culpada. Nossa briosa PMPE e em especial o Batalhão de Choque. Trabalho de quase vinte e oito anos jogado na lama pela imprensa do Sul/Sudeste, atribuindo à falta de preparo e a incompetência da polícia como causa para o que se viu nos Aflitos.
Não faz mal pensávamos nós, estamos acostumados à falta de reconhecimento, injustiças e denuncias vazias. Entretanto, com a enxurrada de acusações não só a aspirante, bem como toda a tropa, passou a ter um sentimento de revolta de como estavam sendo tratados. O exagero passou a nos incomodar. O alento vinha daqui!A nossa imprensa que estava presente ao estádio e acompanhou tudo de perto, começou a falar o que nos interessava: a verdade!!
Pela primeira vez se viu uma quase unanimidade de opiniões, comentários e relatos em favor da PM. Logo se percebeu que os estragos poderiam atingir não só a corporação, mas também o Náutico e a própria Federação Pernambucana de Futebol. A ferocidade dos meios de comunicação nacional, em particular as emissoras de televisão, com relação à incapacidade de serem realizadas partidas de futebol no estado de Pernambuco, acendeu a luz vermelha de alerta para as reais intenções para com o futebol do nosso estado.
Tentativa de tirar a possibilidade de sermos subsede da copa do mundo? Inveja da atual situação dos clubes pernambucanos na séria A do Brasileiro? Tentativa de impedir a realização da final da Copa do Brasil na Ilha do Retiro?
De repente, e de forma natural, começou a defesa coletiva de todos os pernambucanos. Imprensa, políticos, empresários e torcedores revoltados com os absurdos propagados pelos “colonizadores” como se aqui não houvesse tradição histórica, cultural, artística, política e no futebol.
Volta então à cena a nossa protagonista, a Aspirante Lúcia Helena, ainda sob os efeitos da ressaca da tumultuada noite, descobre em sua página de um site de relacionamentos, quase vinte mil recados contendo mensagens de cunho racista e de preconceito pelo fato de ser mulher, negra, policial e nordestina. O choque inicial deu lugar a uma postura impressionante de superação e demonstração de equilíbrio que demonstrou tanto no campo de futebol, quanto no desenrolar da ocorrência, bem como nas diversas entrevistas que concedeu ao longo dos últimos dias. As agressões que sofreu foram compartilhadas pela população pernambucana como se cada ofensa atingisse a alma de todos nós.
Pouco a pouco, a aspirante vai aparecendo nos noticiários locais e de forma tranqüila narra os fatos apresentando a verdade tão desprezada pela imprensa de fora. Aí vem então a oportunidade que todos os que fazem o futebol de nosso estado esperavam ter. Um programa de audiência nacional, com uma apresentadora curiosa com o fato de a nossa aspirante ter efetuado a prisão de uma “celebridade” carioca e talvez na tentativa de expor as “deficiências” e “incompetências” de nossos tão “despreparados” policiais, resolve entrevistar Lucia Helena. Finalmente, a oportunidade de expor aos desinformados o que se passou de fato. Programa voltado para um público diferenciado, poderia ter abordado o fato de ela ser mulher e buscar curiosidades da sua profissão. Não foi assim, inesperadamente, a apresentadora começou a zombar do nosso sotaque, no que foi prontamente corrigida por Lucia Helena. Começou bem. Pensei. Para depois num sentimento de admiração e orgulho ouvir durante mais de dez minutos a aspirante discorrer de forma brilhante sua história verdadeira.
Nas ruas o reconhecimento, em cada mensagem que recebemos, em cada telefonema, onde os choqueanos passam palavras de congratulações a serem levadas a aspirante. Lavou a nossa alma de policiais, acredito que tenha também lavado a alma de todos os pernambucanos que, gostando ou não de futebol, tem orgulho de ser Leão do Norte e de ter, nesse episódio, despertado mais uma vez o sentimento de PERNAMBUCANIDADE.
Ten Cel LUÍS - Comandante do Batalhão de Polícia de Choque de Pernambuco
Autor